O recente caso
do atentado ao jornal francês Charlie
Hebdo, que teve como consequência 12 mortos, e o recentíssimo caso do
incêndio ao prédio do jornal alemão Hamburger
Morgenpost, trazem a tona questões que devem ser discutidas e rediscutidas.
Em primeiro lugar, devemos debater a liberdade
de imprensa, que colocada em um pedestal pela grande mídia, sempre em
defesa da ‘liberdade de expressão’, coloca como inaceitável uma discussão sobre
o tema. Em segundo lugar, se deve debater o problema
da violência como resposta ao direito de se expressar dos cidadãos.
Em um jornal,
programa de televisão, rádio e etc., a edição tem o papel fundamental de
delimitar o que deve ou não ser dito. Dessa forma, já se faz uma escolha pelo
que pode ser expresso. Isso nos leva a entender que a liberdade de expressão
nunca é plena. Por outro lado, a liberdade de imprensa muitas vezes funciona
como maquiagem para um jornalismo barato e de baixo escalão que visa uma
publicidade idiota ou ao mais puro charlatanismo. Dizer qualquer coisa é muito diferente
de saber o que dizer e, no caso de expressão por expressão, eu prefiro ouvir o
latir dos meus cachorros, que mais sapientes são do que muito ser humano por
aí...
O discurso, já
nos diz Foucault na Ordem do Discurso,
pode construir uma verdade entre outras que, aliada ao poder, produz uma
palavra relacional, da qual não podemos dissociar mais o que é dito. Os
instrumentos de delimitação e controle do discurso são muitos, inclusive
defender com palavras aquilo que não se defende com atos. Heidegger em sua obra
Língua de Tradição e Língua Técnica dirá
que “quem quer que seja pode falar sem cessar e a sua palavra não dizer nada.
Um silêncio, pelo contrário, pode dizer muita coisa” (p. 34). Muitos
jornalistas perdem a oportunidade de se calar, na ansiar de muito falar, acabam
por nada dizer. Outros com pequenos traços, como uma charge, dizem muito e
alcançam com seus pincéis lugares pouco esperados. Esse é o caso do Charlie Hebdo, que feriu com suas
caricaturas os mais extremos perfis.
No entanto, o mundo da Internet se tornou propício para a negação da
verdade, devido à facilidade que se tem para a omissão desta. Em nome da dita liberdade de expressão, as maiores
atrocidades são ditas e cometidas sem que haja o menor controle sobre estas,
acontecendo nos mais variados campos, inclusive no meio jornalístico. Segundo
Thomas Mann,
Por
que estou contra a doce liberdade de imprensa? Porque só gera mediocridade. A
lei que a limita é benéfica, pois uma oposição que não tem limites torna-se
insignificante. E a limitação a obriga a ser engenhosa, e isso é uma vantagem
muito grande. Aquele que tem toda a razão pode ser direto e grosseiro (MANN,
2000. p.299).
A imprensa,
assim como as demais mídias e os demais defensores da liberdade de expressão,
não quer ser impedida de dizer nada, no entanto, estes mesmos também não querem
ser responsáveis por nada dito. Ora, é inevitável que respostas virão sobre
aquilo que se diz e estas, na maioria das vezes, não são boas. Mas é o preço
que se paga por dizer algo. A liberdade de imprensa não quer discutir a sua
própria liberdade, não quer dar voz a qualquer um que coloque isso em questão.
O que significa regulamentar a imprensa? Por que a imprensa não pode ser
regulamentada? Isso realmente fere o direito à liberdade de expressão, ou
apenas fere ao jornalismo mais medíocre que nada tem para dizer, mas nos cansa
com o seu interminável falatório? A discussão é saudável e deve ser exercida.
Um assunto não deve ser tabu. Por que a grande mídia não aceita colocar em
pauta a liberdade de imprensa? Acusa de censura aqueles que ousam disso falar.
Mas não seria a própria não discussão
já uma forma de censura?
O nosso segundo
ponto implica em discutir os extremos que levam como uma resposta à palavra
dita o uso da violência. Nenhum caso de liberdade de expressão deve justificar
um ato de violência. O atentado contra os jornais é inadmissível, mas não é
indiscutível. Sabemos que o mundo nunca foi um lugar pacífico para se viver e
que a disputa pela verdade muitas vezes levou a casos de derramamento de
sangue. A extrema direita que defende a xenofobia e a pureza cidadã é tão
culpada quanto o terrorismo que mata vítimas em nome de uma causa qualquer. O sangue corre em
ambas as mãos. Nesse caso não há vítimas, mas consequências. Devemos
repensar a tolerância seja ela de cor, credo, política ou opção sexual. Muitas
vezes palavras podem ferir mais do que armas e, antes de as proferir,
deveríamos fazer uma reflexão sobre o outro.
Quem é esse outro do qual estamos falando? Não seria melhor ficarmos calados em
certas situações? A defesa irrestrita à liberdade de expressão pode, muitas
vezes, representar um extremo. O indivíduo que irrestritamente quer dizer o que
for só para levantar para si a bandeira da liberdade de expressão, pode na
verdade estar apenas encobrindo seu extremo egoísmo, sua inabilidade para se
colocar no lugar do outro e sua incapacidade para pensar em como esse outro se
sente; em outras palavras, a liberdade que se ganha nesses casos nada mais é do
que um orgulho sobre o outro do qual falamos, um olhar de cima e uma
superioridade de dizer: “eu sou melhor porque falo o que eu quero”. Lembremos
que Hitler também disse o que queria e, não conformado apenas em dizer, fez
tudo que disse. Liberdade de expressão ou terrorismo disfarçado de liberdade?
Em que medida a palavra está distante da ação?
BIBLIOGRAFIA
FOUCAULT,
M. A Ordem do Discurso. Tradução de
Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
HEIDEGGER,
M. Língua de Tradição e Língua Técnica.
Tradução de Mário Botas do Original: Langue de Tadition et Langue Technique. Lisboa:
Vega, 1995.
MANN, T. Carlota em Weimar. Tradução de Vera Mourão. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2000.
MANN, T. Carlota em Weimar. Tradução de Vera Mourão. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2000.
MENEZES,
L. M. B. R. Orkut: Liberdade e Alienação. Artefactum,
v. 2, n. 2, p. 111-118, 2009.