domingo, 2 de dezembro de 2018

Sísifo ou o absurdo do amanhã



Sísifo ou o absurdo do amanhã
Em nossa primeira coluna neste jornal (30/07/2017), e que abriu a categoria “Cidade Filosófica”, escrevemos sobre a obra “O Mito de Sísifo” do argelino Albert Camus. Gostaríamos hoje de retomar a temática do absurdo presente na obra. Segundo Camus, o absurdo não pode ser uma filosofia, mas é um sentimento. É quando a razão se depara com seus limites e o homem se encontra divorciado do mundo: não se pode compreendê-lo. Disso surge o homem absurdo, isto é, o resultado do sentimento do absurdo no homem e sua incapacidade para racionalizar o mundo. Nas palavras de Camus: “o homem absurdo, ao contrário, não processa esse nivelamento. Reconhece a luta, não despreza de modo algum a razão e admite o irracional. Desse modo, ele encobre do olhar todos os dados da experiência e não está nada disposto a saltar antes de saber. Ele sabe, somente, que nessa consciência atenta não há mais lugar para a esperança”.
Em que consiste não ter mais esperança? Significa que não se aceitará mais saltos da razão ruma a um indeterminado seja espiritual ou metafísico. O homem absurdo se exprime dentro dos limites da razão e, ao mesmo tempo, se abisma com os limites desta. Não conseguir ir além é o sentimento que se tem de que há algo além no mundo que não podemos significar. No entanto, o homem absurdo não se atreve a conceber o além, um deus ou outros saltos que a razão humana tantas vezes faz. Ele se contenta em viver nos limites da razão e em perceber a incapacidade do ser humano de racionalizar o mundo em que vive. Sua existência é aberta dentro dos limites que lhe é cabível e, por isso, não há esperança para ir além. A esperança morre com a própria impossibilidade de a razão explicar o mundo. O homem absurdo não é um pessimista, muito pelo contrário, ele vive de acordo com as possibilidades que lhe são permitidas pela própria razão, sem permitir que essa atravesse seus limites através de saltos que não se pode acompanhar.
Sobre essa ótica, o amanhã é também o absurdo. Pois como esperar por um dia que não existe ainda? Como dizer que ele virá se não há nada que garanta isso além da própria esperança humana? E quando esse dia vem (e se ele vier), então há a manifestação do próprio absurdo, pois o que estava posto como amanhã, e para além de toda racionalidade humana, surge perante as categorias racionais novamente para se fazer incompreensível e postular um novo amanhã. E o ser humano vive esse circulo indefiníveis vezes sem jamais cessar. É nesse ponto que o homem se aproxima de Sísifo, vivendo por diversas vezes os mesmos hábitos que o prende a mesma rotina sem que ele sequer perceba isso. O homem absurdo não é aquele que escapa a isso, mas é aquele que percebe isso, que toma consciência de si e da sua interminável rotina, percebendo que a pedra que carrega montanha acima é a mesma que deve buscar quando ela rolar montanha abaixo, e essa pedra nada mais é do que a sua própria existência, sendo que esta não podemos nunca deixar de carregar.
O homem absurdo é esse ser perdido e solitário, sem qualquer esperança sobre o amanhã, mas que não deixa de viver com plenitude o dia de hoje. Ele é aquele que toma consciência de sua solitária existência e não foge a ela, mas sente ao máximo o peso do que significa “existir” em um mundo que não podemos significar. Um homem ausente de esperança e pleno da angústia que há no próprio existir e no ato de escolher, pois esse é o ato máximo que condiz com a liberdade, sendo que o homem absurdo se define pela liberdade que há na existência temporal do seu ser.

* Esse ensaio foi publicado primeiramente na "Gazeta" do Amapá no dia 02/12/18.