terça-feira, 11 de agosto de 2015

Por que ser vegetariano?




Muitas pessoas vêem filmes como “A carne é fraca”, emocionam-se e decidem parar de comer carne. Eu mesmo já fiquei sem comer carne durante 4 anos, depois desse filme. Mas há algum dever racional de não se comer carne (de ser vegetariano)?

Um dos conhecidos argumentos pelo vegetarianismo é o argumento da saúde. Ele nos diz que devemos ser vegetarianos, porque assim seremos mais saudáveis. Repare que este argumento tem influênicas empíricas: vários estudos não contestados por vegetarianos mostram que a vitamina B12 tem um papel muito importante em nosso organismo e que, em geral, os vegetarianos que não tomam suplementos têm deficiência dessa substância. É difícil obter B12 de fontes não-animais na quantidade adequada. Muitos vegetarianos obtêm B12 na forma de comprimidos veganos. Por meio deles, um vegetariano pode ter todos os nutrientes adequados sem prejudicar os animais. O problema desse pensamento é que uma alimentação que precisa de suplementação por comprimidos não é uma alimentação, ela mesma, saudável.

Se o vegetariano desiste da suplementação e resolve ter um cuidado extremo com a alimentação, para consumir as corretas quantidades dos nutrientes, então eu diria que essa alimentação deixa de ser saudável psicologicalmente, pois extremo cuidado na alimentação não é algo psicologicamente saudável (e está conectado com patologias como a compulsão alimentar). O peixe, por exemplo, por fornecer tanto B12 quanto vários outros nutrientes, nos dá uma fonte de nutrientes diversificados em um só grupo alimentar, facilitando a alimentação e até a interação social (pela facilidade de encontrar alimento compatível).

O argumento pela saúde não nos leva a ter de aceitar o vegetarianismo, já que uma alimentação em grande parte vegetariana com adicionais de peixe (como a alimentação mediterrânea) seria melhor do que uma alimentação vegetariana stricto. O argumento pela saúde pode até nos levar para perto do vegetarianismo, ao mostrar os perigos da carne vermelha e as vantagens do consumo de frutas e vegetais. Mas o peixe permanece como uma saudável fonte de proteína, de vitamina B12 e outros nutrientes; e, junto com uma alimentação variada, com os cinco grupos alimentares na proporção adequada, forma uma refeição nutricionalmente completa.

Mas o que o vegetariano nos diz é que devemos preferir a alimentação vegana, mesmo que venha com comprimidos e com certos problemas psicológicos (atenção extrema à alimentação) e sociais (dificuldade de encontrar produtos veganos em encontros), dado o argumento da proteção ambiental ou o argumento do sofrimento ou ambos.

O argumento da proteção ambiental enfoca nos problemas causados pela pecuária, como o aumento de metano causado pelos gases dos bovinos, equinos etc, o desflorestamento e consequente redução da diversidade biológica causada pela criação de pastos, e o alto consumo de água desses animais de abate. Essas são razões pragmáticas para preferirmos uma alimentação baseada em vegetais do que em animais.

Esse é um argumento poderoso. Suponha que seja verdade que a carne está destruindo o mundo, e que possamos substituí-la por suplementos vegetais e minerais. Não será um preço caro a se pagar tomarmos suplementos, se com isso protegermos os nossos recursos naturais, utilizando-os sustentavelmente.

Contudo, esse argumento não leva em consideração que não utilizamos os rebanhos só para comer carne. Uma vaca, por exemplo, tem diversas serventias: sua gordura nos permite fazer giz, plástico, entre outras coisas; seu órgãos nos permitem fazer medicamentos e instrumentos musicais; seu sangue nos permite obter soro, que é usado para fazer vacinas; seus ossos servem para fazer açúcar refinado; sua pele serve para fazer gelatina e papel de parede etc...

Dado o material animal ser necessário para construir uma série de objetos ques achamos importantes, temos de pesar a essencialidade desses produtos contra o mal causado para o planeta. Dado, por um lado, a quantidade de água gasta, o metano liberado e a quantidade de diversidade exterminada, e, por outro, a quantidade de produtos comestíveis e não cosmetíveis derivados do gado, vale a pena produzi-los? Eu diria que sim, pois essa produção gera muitos empregos em diversas áreas e gera muitos produtos que nos ajudam no dia a dia. Sem eles, nossa vida seria extremamente difícil. Versões veganas são possíveis em alguns casos, embora não seja garantido que elas serão possíveis em todos; e a pesquisa em versões veganas gasta dinheiro, o que encarece os produtos e piora a nossa vida como consumidores.

Pode-se ainda dizer que ao excluirmos o consumo de carne como comida diminuiríamos significativamente a quantidade de pastos e não teríamos a cultura de abatedouros, pois não iríamos requisitar tanto material animal assim. No entanto, dado que vários remédios são feitos com o cérebro, pâncreas e outros órgãos, entre eles a insulina (para diabéticos), e dado que só no Brasil o número de diabéticos é de aproximadamente 12.054.824, precisaríamos matar muitas vacas para obter a quantidade de pâncreas necessária para a quantidade de insulina que precisamos. A restrição alimentar, assim, não causaria impacto na quantidade dos rebanhos, mas apenas na quantidade de carne que não aproveitaríamos.

Neste ponto, um vegetariano pode dar o terceiro passo e utilizar o argumento do sofrimento dos animais. Sustenta-se que questões econômicas não podem nos fazer consumir animais, pois os animais podem sofrer, e temos de levar em consideração o sofrimento deles ao realizarmos nossas ações. Esse é o argumento que mais me incomoda na defesa do vegetarianismo. Ele me incomoda, porque ele é muito controverso, precisando de uma série de pressuposições, para funcionar.

Em termos gerais, o argumento diz que devemos atentar para os interesses de qualquer ser que tem senciência e interesses na hora de fazer uma avaliação moral e, como os animais têm tudo isso, deveríamos atentar para os interesses deles também.

Para construir esse argumento, o vegetariano parte dos conceitos de agente moral e paciente moral, .i.e., o sujeito que age na ação moral e o sujeito sob o qual ação moral incide. Daí ele nos diz que aqueles que podem ser pacientes morais têm certos direitos, tais quais os nossos. Nós somos sujeitos morais porque além de termos a senciência, i.e., a capacidade de sentir dor e prazer, temos também a consciência, que nos permite refletir sobre o que fazemos e tomar decisões refletidas. Os animais, segundo essa concepção, têm apenas senciência, mas não têm consciência; por isso não podem ser agentes morais, mas apenas pacientes morais (tal como tratamos um bebê). E, sustenta-se, é errado fazer sofrer injustificadamente um paciente moral.

Wow! Muita coisa, né? Mas vamos por partes. Esse tipo de vegetariano nos pede para crer que animais têm senciência, mas não têm consciência. Nos pede para crer também que há objetividade moral e que a moralidade tem algo a ver com a capacidade de sofrer. Como os animais são pacientes morais, eles não precisam ter consideração moral conosco, embora nós, como agentes morais, tenhamos que levar em consideração os interesses deles. Eu acho que há dois principais problemas com todo esse pensamento: a postulação de certa concepção de moralidade e uma certa concepção injustificadamente restrita de seres sencientes.

Por que devemos levar em consideração os interesses de todas as pessoas igualmente, ao realizar uma ação moral? Por que os interesses dos meus familiares e amigos não devem ser priorizados? E devemos mesmo levar em consideração os interesses de bebês e pessoas em coma há muito tempo? Esses são assuntos debatíveis; e, dentro de uma concepção diferente de moralidade, como a que a funda na política e no interesse pessoal, não temos razão para considerar todos os seres sencientes como passíveis de consideração moral, a não ser que nossa relação com eles atrapalhe ou ajude a sociedade.

Mesmo que aceitemos a concepção de moralidade do argumento do sofrimento dos animais, não está claro que os animais não têm consciência. Um leão decide respeitar ou não o território de um outro, um elefante decide em algum momento partir para o cemitério, um cão decide ajudar outro cão acidentado (mas não um rato). O que parece é que muitos animais refletem e tomam decisões, e esses mesmos animais são bastante restritos em quem serão os objetos da consideração deles, quem será importante. Um leão não leva em conta os interesses de uma gazela, um elefante não leva em conta os interesses de um gato, um chimpanzé não leva em consideração os interesses de um falcão. Por que nós deveríamos levar em consideração os interesses e sofrimentos de qualquer outra espécie, caso os animais sejam conscientes e tomem decisões refletidas?

Mesmo supondo que os animais não tomam decisões refletidas, de modo que não são conscientes (não nesse nível), ainda restará mostrar que podemos traçar a fronteira da senciência nos animais. Tal como mamíferos, aves, anfíbios, répteis e insetos têm senciência, não teriam também senciência as amebas e, talvez, outros seres unicelulares? Uma ameba foge, se espetada por uma agulha de micromanipulador. Deveríamos nos importar com a dignidade delas? Poderíamos dizer que a ciência diz-nos quem tem senciência. Mas precisamos das ciências para saber quando o nosso cão ou o nosso filho está com dores?


Sejam quais forem nossas respostas, o vegetariano por motivações racionais tem sérios desafios a resolver, desafios esses que geralmente passam despercebidos na conversa contemporânea sobre vegetarianismo.