Considerações sobre Alberto Caeiro I
Fernando Pessoa,
um dos maiores poetas portugueses, utilizou na composição de sua obra diversos
heterônimos. Um desses é Alberto Caeiro, a quem o próprio Pessoa chama de ‘mestre’.
Caeiro, na obra O Guardador de Rebanhos, fará uma exaltação da sensação acima de
tudo. Ele prezará pelo mundo físico e por tudo aquilo que de imediato contato
pudermos ter. Para ele nossos sentidos existem para nos dar o mundo como ele é,
não havendo a necessidade de metafísica para caracterizá-lo.
Abaixo,
coloca-se o poema V do Guardador de
Rebanhos, que é aquele considerado o mais característico em sua forma de
pensar.
V
Há metafísica bastante em não
pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria
nisso.
Que idéia tenho eu das
cousas?
Que opinião tenho sobre as
causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre
Deus e a alma
E sobre a criação do mundo?
Não sei. Para mim pensar
nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as
cortinas
Da minha janela (mas ela não
tem cortinas).
O mistério das cousas? Sei lá
o que é mistério!
O único mistério é haver quem
pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os
olhos,
Começa a não saber o que é o
sol
E a pensar muitas cousas
cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais
que os pensamentos
De todos os filósofos e de
todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que
faz
E por isso não erra e é comum
e boa.
Metafísica? Que metafísica
têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e
de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora,
o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar
por elas.
Mas que melhor metafísica que
a delas,
Que é a de não saber para que
vivem
Nem sabe o que não sabem?
“Constituição íntima das
cousas”...
“Sentido íntimo do
universo”...
Tudo isto é falso, tudo isto
não quer dizer nada.
É incrível que se possa
pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e
fins
Quando o começo da manhã está
raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai
perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das
cousas
É acrescentando, é como
pensar na saúde
Ou levar um copo à água das
fontes.
O único sentido íntimo das
cousas
É elas não terem sentido
íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque
nunca o vi.
Se ele quisesse que eu
acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar
comigo
E entraria pela minha porta
dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos
ouvidos
De quem, por não saber o que
é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala
delas
Com o modo de falar que
reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as
árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda
hora,
E a minha vida é toda uma
oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e
pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as
flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e
montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para
eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores
e montes,
Se ele me aparece como sendo
árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o
conheça
Como árvores e montes e
flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que
Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver,
espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e
flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda hora.[1]
Caeiro em sua
tentativa de negar a metafísica acaba por torná-la algo atuante e necessária ao
homem, mesmo na colocação de um não pensar. Podemos perceber o pensar como algo
sempre presente, uma vontade de ir além já existente no homem antes dele poder
se constituir como um ‘eu’. É interessante observar como isto está presente na
obra de Caeiro, mesmo sendo através da negação. O
pensar é algo inerente ao homem, já que este não consegue viver sem produzir
pensamentos, o que torna impossível anulá-los em um nada completo. Percebemos,
em sua obra, que o pensar vem antes do nada, o que demonstra uma vontade de
pensar antes de qualquer outra coisa. Caeiro poderia ter dito: Há metafísica
bastante em nada pensar, mas isto não é feito devido a esta necessidade do
homem de pensar sempre, e isso caracteriza a metafísica de Caeiro como
uma necessidade de já existente, além da própria
necessidade ontológica do homem de ser
algo do que nada. O mesmo se dá na
frase seguinte, em que o pensar vem antes do eu, demonstrando que antes mesmo
de existir, já havia pensamento. Isso é representado até mesmo antes do mundo,
o que demonstra uma necessidade transcendente do pensamento sobre a existência
do sujeito. A frase final "Se adoecesse pensaria nisso", demonstra
uma característica de Caeiro, que dizia que uma pessoa doente deve pensar tudo
ao contrário do que pensa quando está são, senão não estaria doente[2].
Caeiro dá ao
pensamento um sentido ambíguo, sendo uma doença inerente ao homem que não
consegue viver de outra forma, sempre colocando o pensamento em primeiro lugar,
quando este não deveria ser. Pensar sobre o mundo, querer saber sobre Deus e a
alma seria na verdade não querer pensar. Esse tipo de pensamento seria o
verdadeiro não pensar, pois Caeiro associa as coisas como elas nos aparecem, ao
olhar que temos sobre as coisas e não propriamente a maneira que a qual
pensamos sobre elas. Se o olho é a janela da alma, deve-se aprender a olhar
através dele, ver o que nos é mostrado e não a pensar sobre o que não vemos.
Uma ligação desse ponto de vista de Caeiro pode ser feito com Oscar Wilde
quando este nos diz: “O verdadeiro
mistério das coisas é o visível, não o invisível...”[3].
Pois só existe mistério para aqueles que pensam nele, para quem não consegue
ver o mundo. Se a janela não tem cortinas, a verdadeira janela seria a própria
alma, num contato direto com o mundo e que nunca pode ser desligada, estando
intimamente ligada à experiência com o mundo.
O signo do sol
remete a um significado de bem, lembrando a própria associação feita por Platão
na República na alegoria da caverna,
em que ele associa o sol ao Bem. O sol em Caeiro tem esse Bem, sendo bom em si
mesmo. Sentir o sol de olhos fechados significa associar coisas semelhantes a
ele sem que consiga se chegar até ele. Ao se olhar diretamente o sol nada mais
se pode pensar, pois o sol responde por si mesmo e não necessita que se remeta
a ele nenhum pensamento fora dele. Tentar dar um significado a natureza é
errôneo; pensar em metafísica da natureza é errado, pois sua função não está
para além da física, ela se encontra na própria física, ela está no mundo. O
que só demonstra o quanto o homem apesar de inserido na natureza, não consegue
participar desta apenas em seu estado físico, mas necessita de uma metafísica.
O que Caeiro demonstra é que o homem precisa estar sempre fora da natureza para
poder falar dela, fazendo sempre com ela uma oposição.
“Pensar
no sentido íntimo das cousas
É
acrescentando, é como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.”
Nessa parte
Caeiro mostra o quão errado é tentar associar sentido às coisas. Dar sentido a
algo é tirar-lhe todo o seu sentido único, é dizer o que ele não é. Pensa-se
demais e sente-se de menos. O que é pensar na saúde? Ou se tem ou não se tem
saúde. É algo que sentimos e não pensamos. A ligação feita por ele com o copo e
a fonte é perfeita. Para que precisamos de copo quando já estamos na fonte?
Têm-se a fonte não precisamos do copo, basta beber direto da fonte, sem
intermediários. O mesmo deve-se dar em relação ao sentido e as próprias coisas:
quando damos sentido a algo deixamos de perceber aquilo que este algo realmente
é; colocamos um copo na própria fonte, que não precisa de copo algum. Isso nos
lembra de uma anedota sobre Diógenes, o cínico. Diz-se que este ao ver uma
criança se dessedentar na margem de um riacho utilizando o côncavo da mão,
desfez-se de sua caneca e, a partir de então, somente passou a ter, de seu, o
manto com o qual ocultava sua nudez e o barril onde dormia. A caneca não era
mais necessária.
O pensamento é
um intermediário do homem às coisas, pois o homem é o único que julga antes de
conhecer, o que muitas vezes evita que o objeto seja conhecido de fato. O Homem
faz pouco uso dos seus sentidos, já que procura pensar neles antes mesmo de
realmente senti-los. Na relação com a natureza e até mesmo com os outros homens
é preciso uma relação mais direta, que só é feita através dos sentidos, já que
pensar antes de sentir coloca o pensamento como intermediário abafando a
capacidade de sentir. Já em Platão é feita uma relação totalmente contrária. Os
sentidos representam o intermediário, e por isso, devem ser evitados.
[...] as coisas que são
examinadas por meio de um intermediário qualquer nada possuem de verdadeiro, e
pertencem ao gênero do sensível e do visível enquanto que o que elas veem pelos
seus próprios meios é inteligível e, ao mesmo tempo, invisível![4].
O mundo dos
sentidos defendido por Caeiro preza pelo visível e por uma relação imediata com
as coisas sem intermédio do pensamento. Platão defende o inteligível
dizendo-nos que a captação do mundo deve ser feita através do pensar já que
esta é a única maneira de ter um contato direto com a essência das coisas, com
o invisível, e evitando se ter uma relação intermediária através dos sentidos.
A verdade no primeiro está naquilo que podemos ver de imediato, no segundo
naquilo que alcançamos apenas através do intelecto, através de um outro tipo de
ver.
Ao falar de Deus
no final do poema, Caeiro demonstra bem essa ideia do pensamento antes do
conhecer. Ele diz não acreditar em Deus pelo fato de ele nunca ter aparecido a
ele, mas ele não diz que Deus não existe. O que ele quer dizer com isto é que
Deus pensado na forma que for pelo Homem não será Deus. Pois o pensar em Deus é
a criação de um intermediário que afasta o Homem de Deus ao invés de aproximá-lo.
Deus desta forma é criado pelo Homem, e também em nada participa do mundo. É
uma representação vazia e sem sentido algum. Como diz no começo do poema número
VI que segue este: “Pensar em deus é desobedecer a Deus, / Porque Deus quis que
o não conhecêssemos, / Por isso se nos não mostrou...”[5].
Para Caeiro as coisas devem ser conhecidas com os sentidos e se Deus não se
mostra ao homem é porque não quer que o conheçamos. E se no caso ele prefere
ser conhecido como flores e árvores e montes e sol e luar, então se deve
acreditar nele, porque isto nós podemos ver. Ao usar as palavras oração, missa
e comunhão numa ligação com a natureza, Caeiro associa a ideia religiosa a sua
estrutura natural de ser. Estes conceitos devem ser utilizados pelos sentidos,
no caso do poema os olhos e os ouvidos, e não com o pensamento que cria ideias
errôneas das coisas. Assim, Caeiro vê Deus na natureza e acredita nele sem
precisar pensar nele. Na sua vida simples e ligado à natureza, ele diz andar o
tempo todo com Deus, sem que com isso pense nele, pois se Deus é a natureza ele
pode pensar nele somente vendo e ouvindo.
[1]
PESSOA, Fernando. Poesia Completa de
Alberto Caeiro. São Paulo Companhia das Letras, 2005, p. 23-25.
[2] Cf.
PESSOA, op. cit., poema XV.
[3] WILDE,
Oscar. O Retrato de Dorian Gray. São
Paulo: Abril Cultural, 1972, p. 34.
[4] PLATÃO. Fédon.,
83b. In: Col. Os Pensadores.
Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. – 2. ed. – São Paulo: Abril
Cultural, 1979, p. 88.