quarta-feira, 2 de abril de 2014

O Guardador de Rebanhos

Considerações sobre Alberto Caeiro I



Fernando Pessoa, um dos maiores poetas portugueses, utilizou na composição de sua obra diversos heterônimos. Um desses é Alberto Caeiro, a quem o próprio Pessoa chama de ‘mestre’. Caeiro, na obra O Guardador de Rebanhos, fará uma exaltação da sensação acima de tudo. Ele prezará pelo mundo físico e por tudo aquilo que de imediato contato pudermos ter. Para ele nossos sentidos existem para nos dar o mundo como ele é, não havendo a necessidade de metafísica para caracterizá-lo.

Abaixo, coloca-se o poema V do Guardador de Rebanhos, que é aquele considerado o mais característico em sua forma de pensar.



V

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem sabe o que não sabem?

“Constituição íntima das cousas”...
“Sentido íntimo do universo”...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentando, é como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda hora.[1]



Caeiro em sua tentativa de negar a metafísica acaba por torná-la algo atuante e necessária ao homem, mesmo na colocação de um não pensar. Podemos perceber o pensar como algo sempre presente, uma vontade de ir além já existente no homem antes dele poder se constituir como um ‘eu’. É interessante observar como isto está presente na obra de Caeiro, mesmo sendo através da negação. O pensar é algo inerente ao homem, já que este não consegue viver sem produzir pensamentos, o que torna impossível anulá-los em um nada completo. Percebemos, em sua obra, que o pensar vem antes do nada, o que demonstra uma vontade de pensar antes de qualquer outra coisa. Caeiro poderia ter dito: Há metafísica bastante em nada pensar, mas isto não é feito devido a esta necessidade do homem de pensar sempre, e isso caracteriza a metafísica de Caeiro como uma necessidade de já existente, além da própria necessidade ontológica do homem de ser algo do que nada. O mesmo se dá na frase seguinte, em que o pensar vem antes do eu, demonstrando que antes mesmo de existir, já havia pensamento. Isso é representado até mesmo antes do mundo, o que demonstra uma necessidade transcendente do pensamento sobre a existência do sujeito. A frase final "Se adoecesse pensaria nisso", demonstra uma característica de Caeiro, que dizia que uma pessoa doente deve pensar tudo ao contrário do que pensa quando está são, senão não estaria doente[2].

Caeiro dá ao pensamento um sentido ambíguo, sendo uma doença inerente ao homem que não consegue viver de outra forma, sempre colocando o pensamento em primeiro lugar, quando este não deveria ser. Pensar sobre o mundo, querer saber sobre Deus e a alma seria na verdade não querer pensar. Esse tipo de pensamento seria o verdadeiro não pensar, pois Caeiro associa as coisas como elas nos aparecem, ao olhar que temos sobre as coisas e não propriamente a maneira que a qual pensamos sobre elas. Se o olho é a janela da alma, deve-se aprender a olhar através dele, ver o que nos é mostrado e não a pensar sobre o que não vemos. Uma ligação desse ponto de vista de Caeiro pode ser feito com Oscar Wilde quando este nos diz: “O verdadeiro mistério das coisas é o visível, não o invisível...”[3]. Pois só existe mistério para aqueles que pensam nele, para quem não consegue ver o mundo. Se a janela não tem cortinas, a verdadeira janela seria a própria alma, num contato direto com o mundo e que nunca pode ser desligada, estando intimamente ligada à experiência com o mundo.

O signo do sol remete a um significado de bem, lembrando a própria associação feita por Platão na República na alegoria da caverna, em que ele associa o sol ao Bem. O sol em Caeiro tem esse Bem, sendo bom em si mesmo. Sentir o sol de olhos fechados significa associar coisas semelhantes a ele sem que consiga se chegar até ele. Ao se olhar diretamente o sol nada mais se pode pensar, pois o sol responde por si mesmo e não necessita que se remeta a ele nenhum pensamento fora dele. Tentar dar um significado a natureza é errôneo; pensar em metafísica da natureza é errado, pois sua função não está para além da física, ela se encontra na própria física, ela está no mundo. O que só demonstra o quanto o homem apesar de inserido na natureza, não consegue participar desta apenas em seu estado físico, mas necessita de uma metafísica. O que Caeiro demonstra é que o homem precisa estar sempre fora da natureza para poder falar dela, fazendo sempre com ela uma oposição.

“Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentando, é como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.”

Nessa parte Caeiro mostra o quão errado é tentar associar sentido às coisas. Dar sentido a algo é tirar-lhe todo o seu sentido único, é dizer o que ele não é. Pensa-se demais e sente-se de menos. O que é pensar na saúde? Ou se tem ou não se tem saúde. É algo que sentimos e não pensamos. A ligação feita por ele com o copo e a fonte é perfeita. Para que precisamos de copo quando já estamos na fonte? Têm-se a fonte não precisamos do copo, basta beber direto da fonte, sem intermediários. O mesmo deve-se dar em relação ao sentido e as próprias coisas: quando damos sentido a algo deixamos de perceber aquilo que este algo realmente é; colocamos um copo na própria fonte, que não precisa de copo algum. Isso nos lembra de uma anedota sobre Diógenes, o cínico. Diz-se que este ao ver uma criança se dessedentar na margem de um riacho utilizando o côncavo da mão, desfez-se de sua caneca e, a partir de então, somente passou a ter, de seu, o manto com o qual ocultava sua nudez e o barril onde dormia. A caneca não era mais necessária.

O pensamento é um intermediário do homem às coisas, pois o homem é o único que julga antes de conhecer, o que muitas vezes evita que o objeto seja conhecido de fato. O Homem faz pouco uso dos seus sentidos, já que procura pensar neles antes mesmo de realmente senti-los. Na relação com a natureza e até mesmo com os outros homens é preciso uma relação mais direta, que só é feita através dos sentidos, já que pensar antes de sentir coloca o pensamento como intermediário abafando a capacidade de sentir. Já em Platão é feita uma relação totalmente contrária. Os sentidos representam o intermediário, e por isso, devem ser evitados.

[...] as coisas que são examinadas por meio de um intermediário qualquer nada possuem de verdadeiro, e pertencem ao gênero do sensível e do visível enquanto que o que elas veem pelos seus próprios meios é inteligível e, ao mesmo tempo, invisível![4].

O mundo dos sentidos defendido por Caeiro preza pelo visível e por uma relação imediata com as coisas sem intermédio do pensamento. Platão defende o inteligível dizendo-nos que a captação do mundo deve ser feita através do pensar já que esta é a única maneira de ter um contato direto com a essência das coisas, com o invisível, e evitando se ter uma relação intermediária através dos sentidos. A verdade no primeiro está naquilo que podemos ver de imediato, no segundo naquilo que alcançamos apenas através do intelecto, através de um outro tipo de ver.
Ao falar de Deus no final do poema, Caeiro demonstra bem essa ideia do pensamento antes do conhecer. Ele diz não acreditar em Deus pelo fato de ele nunca ter aparecido a ele, mas ele não diz que Deus não existe. O que ele quer dizer com isto é que Deus pensado na forma que for pelo Homem não será Deus. Pois o pensar em Deus é a criação de um intermediário que afasta o Homem de Deus ao invés de aproximá-lo. Deus desta forma é criado pelo Homem, e também em nada participa do mundo. É uma representação vazia e sem sentido algum. Como diz no começo do poema número VI que segue este: “Pensar em deus é desobedecer a Deus, / Porque Deus quis que o não conhecêssemos, / Por isso se nos não mostrou...”[5]. Para Caeiro as coisas devem ser conhecidas com os sentidos e se Deus não se mostra ao homem é porque não quer que o conheçamos. E se no caso ele prefere ser conhecido como flores e árvores e montes e sol e luar, então se deve acreditar nele, porque isto nós podemos ver. Ao usar as palavras oração, missa e comunhão numa ligação com a natureza, Caeiro associa a ideia religiosa a sua estrutura natural de ser. Estes conceitos devem ser utilizados pelos sentidos, no caso do poema os olhos e os ouvidos, e não com o pensamento que cria ideias errôneas das coisas. Assim, Caeiro vê Deus na natureza e acredita nele sem precisar pensar nele. Na sua vida simples e ligado à natureza, ele diz andar o tempo todo com Deus, sem que com isso pense nele, pois se Deus é a natureza ele pode pensar nele somente vendo e ouvindo.




[1] PESSOA, Fernando. Poesia Completa de Alberto Caeiro. São Paulo Companhia das Letras, 2005, p. 23-25.
[2] Cf. PESSOA, op. cit., poema XV.
[3] WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. São Paulo: Abril Cultural, 1972, p. 34.
[4] PLATÃO. Fédon., 83b. In: Col. Os Pensadores. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. – 2. ed. – São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 88.
[5] PESSOA, op. cit., p. 26.