terça-feira, 19 de abril de 2011

A vontade de acreditar de James

William James (1897) pensa de um modo muito peculiar. Ele concorda com Clifford (1877) em as pessoas deverem ser ajuizadas de acordo com as ações que praticam e de acordo com as crenças que adotam, e com sua regra 1 (ou seja, “se alguém sabe de indícios contra uma hipótese e não sabe de indícios a favor, então se ela aceita a hipótese, comete uma imoralidade”). James discorda de Clifford justamente na regra 2 (“se não há indícios contra ou a favor da crença, é imoral aceitá-la ou rejeitá-la”), porque pensa que, quando uma hipótese é indecidível e apresenta uma opção genuína, não é incorreto deixar a nossa natureza passional decidir (podemos acreditar no que nos apetece). E a hipótese religiosa é indecidível – pois temos indícios para crer tanto no teísmo, quanto no ateísmo – e nos apresenta uma opção genuína. Uma opção genuínas é uma hipótese que é viva, momentosa e forçosa. Uma hipótese é viva (diferente de morta) quando ela é atrativa por aparentar ser uma possibilidade real. Uma hipótese é momentosa (diferente de trivial) quando podemos não vir a ter outra possibilidade de decidir entre hipóteses, quando não podemos facilmente reverter a escolha, ou quando há consequências importantes advindas da escolha. E uma hipótese é forçosa (diferente de evitável) quando não decidir entre hipóteses tem as mesmas consequências de se decidir por uma delas.

Uma decisão entre acreditar que P e acreditar que não-P nunca é forçosa com relação à verdade e ao erro, pois sempre podemos suspender o juízo e, assim, estarmos sempre diferentes de como estariam os que acreditam que P e os que acreditam que não-P: enquanto um estaria falando a verdade e o outro a falsidade, aquele que suspende o juízo nunca poderia estar falando verdade ou falsidades. Por isso, a forçosidade tem a ver com as conseqüências da crença, e não propriamente com a verdade e o erro da crença. A hipótese religiosa é uma opção genuína porque é considerada por nós uma hipótese viva, momentosa (apenas no último sentido) – pois ganhamos bens substanciais se acreditarmos e perdemos se não acreditarmos – e forçosa (no que diz respeito ao bem vital) – pois se a hipótese for verdadeira, o ateu e o agnóstico terão as mesmas consequências, a saber, perderão os bens substanciais.

A objeção a isso (Rowe, 2007, cap. 6) é que James só prova que a crença na existência de Deus é momentosa e forçosa, se Deus existir. Se Deus não existir a hipótese não é nem momentosa e nem forçosa, pois não existiria o bem vital em jogo. James (idem, p. 105) prova que “a hipótese religiosa pode ser momentosa e forçosa; não temos como saber que não é”.

James (Murcho, 2009) nos fala que existem três políticas de adoção de crenças: (i) a teísta, que arrisca errar pela oportunidade de acertar a verdade e conseguir um bem vital; (ii) a ateísta, que arrisca errar e não conseguir um bem vital em troca da oportunidade de acertar a verdade; (iii) e a agnóstica, que arrisca não acertar a verdade e não conseguir um bem vital, em troca da certeza de não errar. Clifford nos diz que na ausência de indícios suficientes, devemos ter a política agnóstica (antes não acertar a verdade do que arriscar errar) para não enfraquecer nas pessoas o hábito de testar e investigar as coisas. Mas James argumenta que não há regra que nos comprometa a uma dessas políticas: podemos escolher a política de acordo com nossa natureza passional: temos o direito de escolha.

A fim de explicar melhor a tese de James, vou expor seus pormenores. Primeiramente, ele pensa que as nossas convicções sobre fatos podem advir do intelecto ou da nossa natureza passional e volitiva. Sobre o primeiro, não podemos acreditar na negação de o que o intelecto nos mostra como verdadeiro. Sobre o segundo, como James pensa que coisas como a existência de Deus não podem se decididas pelo intelecto, ele pensa ser legítimo decidi-las por meio de nossa natureza passional ou volitiva. James acredita que pensar que todos os assuntos devem ser decididos pela razão pura é ir contra a realidade dos fatos. Temos crenças sobre assuntos políticos, religiosos, éticos, entre outros, sem que tenhamos boas razões para tal. Se um cético pirrônico nos perguntasse como sabemos o que afirmamos, teríamos que dizer que vivemos com base em pressupostos e que nossas crenças participam de uma luta de volições. Quando os “lógicos” excluem nossa natureza passional, é porque não vêem utilidade para tal natureza nos processos lógicos. Não é só a lógica (o intelecto, a razão pura) que produz a crença, mas nossa natureza passional tanto prepara o terreno para a crença, quanto surge também depois da crença.

A tese de James pode ser exposta assim:

a nossa natureza passional não só pode, legitimamente, como deve decidir uma opção entre proposições, sempre que se trata de uma opção genuína que não pode, pela sua natureza, ser decidida numa base intelectual; pois afirmar em tais circunstâncias ‘Não decidas, deixa a questão em aberto’, é em si uma decisão passional – tal como decidir pelo sim ou pelo não – e é tratada com o mesmo risco de perder a verdade (idem, p. 52).


James aceita o postulado de que há verdade e de que o destino de nossas mentes é alcançá-la. Mas pensa que acreditar em tal postulado é ter fé. Isso faz a conversa entrar em terreno dogmático, em detrimento de em um terreno cético. Ele diz que há duas formas de se acreditar nesse postulado, em dois graus de dogmatismos diferentes: (1) empirista e (2) absolutista. 1 diz que podemos saber, mas não podemos saber infalivelmente que sabemos; e 2 diz que podemos saber e podemos saber infalivelmente que sabemos.

Qual dessas duas formas de acreditar no postulado devemos aceitar? A resposta de James é que adotar qualquer uma delas será uma atitude advinda de uma natureza passional, pois não podemos tomar a crença numa delas como algo não revisável e já decidido pelo intelecto. Falar que algumas verdades possuem indícios objetivos, diz-nos James, é apenas falar que se a consideramos verdadeira e se ela é verdadeira, os indícios a seu favor serão objetivos e do contrário não. Falar que os indícios pelos quais nos guiamos são objetivos é apenas mais uma hipótese ao lado de outras. O decisivo nas crenças para o empirista é quais são os seus resultados a partir daquela crença, e não de onde ela proveio (das paixões, da razão etc): a confirmação da crença mostra que a crença é verdadeira. Para o absolutista, a força do sistema está em seus princípios, em de onde provém a crença.

James afirma que há duas maneiras de encarar nosso dever para com relação à opinião: (1) temos de saber a verdade; (2) temos de evitar o erro. Essas são duas leis diferentes, que pode cada uma delas ser vista como primária ou secundária, de acordo com a teoria epistemológica aceita. James diz que Clifford opta por considerar o primeiro princípio como secundário, e o segundo como primário. Por isso, Clifford fala que devemos ser agnósticos. James pensa que nossos deveres para com relação à verdade são expressões de nossa vida passional. E pensa que errar, quando buscamos a verdade, não é nada de tão horrível quanto Clifford pensa ser.

Quando falamos de hipóteses que não são momentosas, nem forçosas, nem vivas, faz sentido que nos salvaguardemos de acreditar em falsidades, tornando-nos agnósticos (deitando fora a possibilidade de alcançar a verdade). Não precisamos acreditar numa teoria prematura –que pode ser falsa – a fim de alcançar a verdade. Com relação à escolha entre opções desse tipo, “é melhor não as fazer, continuando todavia a pesar as razões pro et contra de modo indiferente” (idem, p. 57), sem influência passional. De modo indiferente, é claro, para a esfera científica, pois é a natureza passional que faz os pesquisadores investigarem para ver sua fé confirmada.

O investigador útil, segundo James, é aquele que pende ardentemente para um dos lados e tem o desejo de não se deixar iludir. Para não se deixar iludir, as ciências criaram métodos de verificação. Tais métodos fizeram com que as ciências apenas atentassem para verdades que passassem pelos métodos, para as verdades tecnicamente verificadas. Sempre que, quando não há uma hipótese forçosa, devemos nos salvaguardar do engano? As hipóteses científicas não são forçosas. Mas há opções forçosas em algumas de nossas questões especulativas, segundo James. E para aceitar alguma delas, não é preciso esperar até que se tenham obtido indícios coercitivos. Exemplos de tais opções são as advindas de questões morais, onde, para indicarmos o valor de algo, precisamos consultar nossas emoções. Para decidir entre o ceticismo moral e o moralismo, ou entre o ceticismo intelectual e o intelectualismo, temos que fazer uma escolha passional; “quando sustentamos que verdade (seja de que tipo for), fazemo-lo com toda a nossa natureza, e decidimos ficar de pé ou cair, consoante os resultados. O cético, com toda a sua natureza, adota a atitude da dúvida: mas qual de nós é o mais sensato, só a Onisciência sabe” (idem, p. 58).

James diz que um caso onde a fé num fato pode ajudar a criar este fato (como o caso no qual tenho fé em que vou conseguir uma promoção, luto por ela, e consigo) é um caso onde o princípio de Clifford de que “a fé é o tipo mais baixo de imoralidade” não se aplica. “Ter fé em algo e depois ver os resultados” é o princípio empirista, e “ficar parado até que tenhamos obtido os indícios que nos coajam intelectualmente a aceitar o fato” é o princípio absolutista. O princípio absolutista (o princípio de Clifford) não se aplica a muitos casos. “Nas verdades que dependem da nossa ação pessoal, portanto, a fé baseada no desejo é certamente algo legítimo e possivelmente indispensável” (idem, p. 59). A Ciência diz o que as coisas são. A Moral diz o quanto as coisas valem (quais são melhores e quais são piores). A Religião diz que: (1) as melhores coisas são as mais eternas (a perfeição é eterna); e que (2) ficamos melhor se acreditarmos em 1. Caso a hipótese religiosa seja viva, momentosa e forçosa, o que James argumenta é que não há razões para optarmos pela atitude agnóstica (não apostar na verdade pelo medo de errar) em detrimento da atitude crente-empirista (apostar na verdade mesmo tendo a chance de errar). O interesse do crente pelo bem vital vale o risco para ele, enquanto o cientista absolutista acredita que não vale o risco. E isso é assim ainda que “a necessidade passional de compreender religiosamente o mundo possa ser profética e correta” (p. 60). Pois também a isso se assemelha o cientista que aposta numa tese que se verifica.

Se a hipótese religiosa fosse verdadeira, e também fosse verdade que dos deuses não poderíamos obter indícios suficientes a não ser que percorramos metade do caminho na direção deles, seria verdade que com o puro intelectualismo não poderíamos obter conhecimento da existência dos deuses, e na verdade seria um absurdo requisitar isso, dado que a hipótese religiosa aceita que é necessária uma certa empatia natural para ter tais indícios. Assim, James não aceita a regra agnóstica da verdade porque pensa que ela o impediria de obter a verdade; e uma regra para obter a verdade que impede a obtenção da verdade é irracional. Mas James defende apenas o direito de, em determinados casos (nas opções genuínas indecidíveis), acreditarmos no que quisermos (postura agnóstica ou postura empirista), e não que temos o dever de assumir a postura por ele chamada de “empirista”.

James pensa que não se pode demonstrar pela razão a verdade ou a probabilidade de afirmações acerca do divino (pois foram reveladas por Deus), mas a política da fé é intelectualmente defensável e não é violação da obrigação intelectual. A objeção de Rowe (2007, p. 107) aqui é que James deveria responder por que a política teísta não enfraquece o hábito de testar e investigar as coisas, ou ele deveria mostrar que o bem possível a ser obtido pelo teísta ultrapassa em valor o enfraquecimento do hábito. Contudo, James não faz isso. Ele somente vai contra o pressuposto indiciarista de que as crenças religiosas só serão aprovadas pela razão se forem sustentadas adequadamente por indícios. Ele defende, de alguma forma, que não é errado aceitar certas crenças sem ter indícios conclusivos. 

Referências

Clifford, W. K. (1879) “A Ética da Crença”, in Murcho (2009).

James, William (1897). “A Vontade de Acreditar”. In Murcho (2009).

Murcho, Desidério (org.) (2009) Fé, Epistemologia e Virtude: Ensaios de Filosofia da Religião. Trad. Vítor Guerreiro. Lisboa: Bizâncio, no prelo.

Rowe, William L. (2007) Introdução à Filosofia da Religião. Trad. Vítor Guerreiro. Revisão científica de Desidério Murcho. Lisboa: Verbo, 2011.