sábado, 16 de abril de 2011

Os argumentos morais da existência de Deus


Algumas pessoas têm a impressão de que Deus se relaciona com a Ética de um modo bem profundo, como se ele fosse, de alguma forma, necessário para a nossa moralidade. Em Ética e Filosofia da Religião, a relação entre Deus e a moralidade costuma ser defendida de três formas: (I) Deus tem um papel metafísico na moralidade, ou seja, a verdade dos juízos morais depende da vontade e das atitudes de Deus. (II) Deus tem um papel epistêmico na moralidade, ou seja, adquirimos o conhecimento sobre quais são os juízos morais verdadeiros por meio de Deus. (III) Deus tem um papel motivacional na moralidade, ou seja, Deus fornece uma razão para sermos morais.

O voluntarismo é a tese filosófica que defende que algo é bom porque Deus promulgou que é bom; ela diz que Deus tem um papel metafísico na moralidade. A objeção mais comum a essa tese advém do dilema de Êutifron – de Platão – e diz que, se fosse assim, o que é bom ou mau seria contingente e arbitrário, já que se Deus quisesse que algo que consideramos mau – como o genocídio – fosse bom, isso seria bom. E, assim, teríamos que aceitar que nossa Ética é subjetiva e arbitrária.

Mas se temos um compromisso com a normatividade da Ética (com o fato de haver deveres/normas morais), temos também um compromisso com a objetividade da ética, pois a normatividade implica que podemos falhar no que fazemos, dado que podemos agir em desacordo com a norma. Por exemplo, se for uma norma não roubar, então podemos falhar conforme agimos em desacordo com a norma. Por sua vez, a falibilidade implica objetividade, pois só podemos falhar porque há algo objetivo pelo qual nossa ação ou valoração pode ser considerada uma falha. Por exemplo, se falhamos em fazer uma conta, é porque objetivamente há um modo correto de fazer a conta. Mas a objetividade da Ética implica que ela não depende do que acreditam as pessoas (implica que ela é autônoma), ou seja, não pode ser as pessoas acreditarem que algo é certo que torna esse algo certo. Assim, a ética não pode depender das vontades ou atitudes de Deus, pois se não ela seria subjetiva, e não objetiva, e coisas que consideramos patentemente más poderiam ser boas, se Deus quisesse.

A resposta teísta a esta objeção seria dizer que Deus não quereria nada que não fosse bom. O problema dessa resposta é que ela pressupõe que as coisas sejam boas independentemente da vontade de Deus, que elas sejam boas por sua própria natureza e, por isso, Deus as escolhe. Pois se Deus quer apenas o que é bom, então não é sua vontade que faz algo ser bom, dado que se fosse sua vontade, então tudo que ele quisesse seria bom. Se um teísta aceita o voluntarismo, ele deve no mínimo rejeitar a autonomia da Ética. Mas não apenas um teísta pode aceitar o voluntarismo. Um ateísta também o pode; entretanto, se ele o aceita, ele deve ser niilista com relação à moralidade, porque pensaria que é a vontade de Deus que faz os juízos morais verdadeiros, mas que, como não há Deus, não há juízos morais verdadeiros, ou seja, são todos falsos.

A opção ao voluntarismo é o naturalismo. Este diz que os juízos morais são sobrevenientes aos juízos naturais e independentes da vontade ou das atitudes de qualquer ser. Os juízos morais serem sobrevenientes a juízos naturais significa que dois estados de coisas (dois universos, por exemplo) que são idênticos em todas as suas propriedades naturais também são idênticos em suas propriedades morais. Isso quer dizer que se é errado matar um ser humano numa determinada situação X toda descritível em termos naturais, então se ocorrer a situação X, será errado matar o ser humano em causa. O sobreveniente é apenas para que a avaliação moral de uma situação seja dependente de sua descrição natural: se não mudar a descrição natural, não pode mudar a avaliação moral da situação. E a descrição natural de uma situação sobre a qual o juízo moral é superveniente prescinde das vontades envolvidas na situação. Um exemplo: imagine dois universos, A e B, com pessoas idênticas e com tudo que é descritível1 naturalmente sendo idêntico. No mundo A, se for verdade que matar é errado, então também será verdade no mundo B que matar é errado, dado não haver dessemelhança em suas descrições naturais.

O naturalismo apenas impede o papel metafísico de Deus, dado fazer a moralidade ser sobreveniente à natureza, mas não os papéis epistêmico e motivacional. Diferentemente do voluntarismo, ao tomarmos o naturalismo junto com o ateísmo, isso não implicará o niilismo, pois a não existência ou existência de Deus não interferiria com a moralidade e com a verdade dos juízos morais. O argumento a favor de rejeitarmos o voluntarismo é, tal como já dissemos, que “ser aprovado por Deus é ser amado por Deus. O que faz Deus ter esta atitude com respeito a algo tem de ser qualquer outra característica da coisa” (Brink, 2007, p. 126). É o fato de algo ser bom que faz Deus aprovar esse algo. O ponto principal é que se o voluntarismo for verdadeiro, então a moral não poderá ser sobreveniente ao natural.

O problema do naturalismo, então, para o teísmo é que se as exigências morais são independentes de Deus, elas estão para além de seu controle. Daí, se a onipotência for concebida como a capacidade de fazer tudo, então o naturalismo atestaria contra a onipotência de Deus. Mas se tomarmos a onipotência como a capacidade de fazer tudo que não vai contra as leis necessárias (que não poderiam ser falsas ou não existir), então o naturalismo não atesta contra a onipotência. A vantagem do naturalismo é que ele explica como o ateísta pode reconhecer exigências morais e permite aos teístas falar que os mandamentos de Deus não são arbitrários; eles se baseiam em princípios. O grande problema do voluntarismo é que sua suposição de que a moralidade exige uma fundação religiosa ameaça a objetividade e a autonomia da própria moralidade. Por isso, ele destrói as bases do que quer defender.

Mas dado o problema do voluntarismo, o que seriam as exigências ou qualidades morais, se não as atitudes e vontades de Deus? David O. Brink (2007, p. 126) nos indica que essa pergunta advém de uma concepção da fundamentação da moralidade, que a divide em (i) afirmações morais particulares, (ii) regras morais e (iii) princípios morais. As primeiras são afirmações que indicam que uma determinada ação particular é errada. As regras identificam fatores moralmente relevantes e dizem respeito a uma classe de ações, como, por exemplo, “devemos cumprir as promessas que fizemos”. E os princípios morais aplicam-se a muitas classes de ações e nos dizem por que certos fatores são moralmente relevantes, podendo ser plurais ou um princípio régio – como o de utilidade ou como o imperativo categórico.

i depende de ii que depende de iii para ser verdadeiro, e a verdade deste último geralmente é pensada como sendo auto-evidente. Essa é uma dependência metafísica, pois para i ser verdade, isso dependeria de ii ser verdade, que por sua vez dependeria de iii ser verdade. Mas a dependência metafísica não implica uma dependência epistêmica. Ou seja: não é porque a verdade de um depende da verdade do outro que para sabermos que i é verdadeiro, precisamos saber que ii é verdadeiro ou saber que iii é verdadeiro. Pois, por vezes, temos mais certeza de que um juízo do tipo i é verdadeiro do que um juízo do tipo iii.

A auto-evidência é asserida para juízos do tipo 3 porque eles não se fundamentariam em mais nada para serem verdadeiros. Mas não é necessário que utilizemos apenas a auto-evidência. Podemos utilizar outro método: quando nos perguntamos se um juízo de tipo iii é verdadeiro, podemos testá-lo para os casos do tipo i e ver se eles concordam ou não com nossas intuições morais que pensamos serem plausíveis. Por exemplo, se tomamos o princípio de que o bem é a maior felicidade para o maior número de pessoas (como expressamos, de modo lato, o princípio utilitarista) e o aplicarmos a casos particulares, poderíamos ver se o princípio se adéqua ao que diríamos ser bom nos casos particulares. Se ele concordar, ótimo; mas se ele não concordar, então teremos de revê-lo ou teremos de rever as nossas intuições particulares ou nossas regras morais – sempre tentando alcançar um equilíbrio entre as intuições morais ponderadas das pessoas e as regras e princípios que subsumem os juízos morais particulares.


No entanto, o papel epistêmico de Deus na moralidade não cai nos problemas do voluntarismo, pois sua relação com a moralidade seria a de ser um indicador confiável da moralidade. Isso daria à religião um papel epistêmico significativo na moralidade, caso a consideremos como conectada a Deus, a saber, o de nos dizer com mais precisão o que é certo e o que é errado. O problema dessa tese é que se o naturalismo estiver certo (o que implicaria que o voluntarismo está errado), então há uma fonte metafísica independente de Deus para a moralidade, que pode ser apreendida por nosso raciocínio moral. E todos aceitam que é preferível o reconhecimento de indícios diretos advindos de nosso raciocínio do que os indícios indiretos provindos das indicações de Deus.

E, de qualquer forma, segue a crítica, não temos como sempre saber a vontade de Deus, já que existem várias religiões falando coisas inconsistentes entre si e, às vezes, não falando nada sobre um determinado assunto. E mesmo nos casos onde as religiões, através de suas escrituras, se pronunciam, temos que saber se a interpretação de seus livros deve ser literal ou não. Sobre a interpretação, a que geralmente é aceita pelo teísta é aquela que é a moralmente mais aceitável; prática chamada de “interpretação moralizada”. A objeção a essa prática é que nessa concepção não é a vontade de Deus que nos fornece indícios sobre a natureza da moralidade, mas são nossas crenças sobre a moralidade que nos fornecem indícios da vontade de Deus. Assim, a religião dependeria da moralidade para obter informações sobre o que é o certo, e não o inverso – o que seria contrário à motivação teísta.

Outro tipo de teorias são as que atribuem a Deus um papel motivador no que diz respeito à moralidade. Estas querem fornecer uma resposta prudencial para a pergunta também prudencial “por que ser moral?” – semelhante à pergunta “a virtude compensa?” – e que surge ao colocarmos em conflito a ética com o interesse próprio. Poderíamos responder dizendo que as exigências morais coincidem com os interesses do agente, pois todos têm interesses nos frutos de uma sociedade regulada por normas de cooperação. E agir em desacordo com elas é normalmente percebido e não é visto com bons olhos pelos outros membros da sociedade, sendo punido com sanções. Em longo prazo, agir em desacordo é pior do que agir em acordo com as normas de cooperação. O problema dessa resposta é que ela faz com que, se alguém pudesse se assegurar de não ser detectado, não seria irracional ele não agir moralmente, pois não haveria motivação para que ele agisse moralmente. Deus entra justamente neste ponto: um Deus teísta poderia, com suas sanções e recompensas, tornar perfeita essa coincidência entre moralidade e interesse próprio. Deus forneceria um incentivo necessário para sermos morais: o Céu e o Inferno. São esses incentivos que tornam as sanções e recompensas terrestres irrelevantes para a moralidade: por mais que soframos ao sermos morais, haverá uma recompensa para isso, e por mais que ganhemos ao sermos imorais, haverá uma punição para isso.

Mas é sempre prudente o que é moralmente correto? E é desejável uma justificação prudencial para a moralidade? Perguntamos isso, pois ao darmos tal justificação de tal tipo, tornamos o comportamento moral um mero instrumento; sugerimos que as ações corretas devem ser praticadas não porque são corretas, mas porque são de algum modo do nosso interesse. No entanto, consideramos que, quando uma pessoa realiza uma ação moral apenas como um instrumento para uma certa finalidade de interesse próprio, o valor da sua ação é diminuído. “Deus pode escolher recompensar o altruísmo desinteressado, mas não pode ser a perspectiva dessa recompensa que motiva os agentes” (Brink, 2007, p. 134), pois se não o altruísmo não seria desinteressado. Kant pensa exatamente dessa forma. Ele pensa que o bem não pode depender das atitudes ou vontades de qualquer ser e que uma ação pode ser vista como correta ou incorreta por qualquer ser racional; donde, não precisaríamos de Deus para legislar sobre a moralidade. A moral funda-se na razão, e não na vontade de Deus. E Deus não parece ser algo interessante para ocupar um papel motivador com respeito à moralidade, pois o único motivador que permite que ajamos moralmente, sem que isso seja um meio para a obtenção de algo, é o respeito à lei moral. Todo o resto faria com que estivéssemos simplesmente realizando uma ação interessada.

Kant vai contra o argumento moral popular do papel motivacional de Deus com suas recompensas e punições para a moralidade. Ele pensa que a conexão entre virtude e felicidade não pode se dar dessa forma. Com o objetivo de explicar como seria essa conexão, ele formula seu próprio argumento moral, que é como se segue. A vida moral pressupõe uma conexão entre virtude e felicidade; mas não há nada no mundo que garanta tal conexão. Como temos que promover o bem supremo (o bem supremo é a conexão total entre virtude e felicidade), e como não temos o dever de promover o que for impossível, o bem supremo tem de ser possível; e só um ser supremo poderia garantir o bem supremo, já que nada no mundo natural o faz.

Mais formalmente, o argumento de Kant é assim:

(1) Temos o dever moral de promover o bem supremo.
(2) Se temos o dever moral de promover o bem supremo, este tem de ser possível.
(3) Se Deus não existisse, o bem supremo não era possível.
(4) Logo, Deus existe.

Contra a premissa 2, diz-se, por exemplo, que podemos ter o dever de realizar nossos sonhos e os nossos sonhos não serem realizáveis, tal como poderia ocorrer com o bem supremo. E, com relação à premissa 1, objeta-se negando a premissa e dizendo que não temos o dever de promover a conexão entre virtude e felicidade (o bem supremo), embora o façamos por vezes com nossas leis; podemos no máximo ter o dever de promover a virtude – por exemplo, através de leis punitivas e recompensadoras. Daqui podemos partir para a objeção à premissa 3, que á seguinte: mesmo que Deus não existisse, seria possível o bem supremo, dado que é possível aperfeiçoarmos a conexão entre virtude e felicidade por meio de educação e leis. E tal possibilidade faria o fardo da prova cair sobre o teísta, que teria que explicar porque não conseguiremos conectar totalmente virtude e felicidade sem a ajuda de Deus. É também possível falar que a virtude é sua própria recompensa, que não há recompensa extrínseca. Mas seja o que for que digamos, não precisamos atribuir nenhum papel a Deus. Assim, “podemos ver como a moralidade ajuda a religião, mas é difícil ver como a religião ajuda a moralidade” (Brink, 2007, p. 135).

Notas

1 Tomamos, aqui, “descrição” como algo que é distinto de “valoração” ou “avaliação”. E “natural” diz respeito às nossas ciências da natureza. Uma descrição é algo como “um objeto d tem uma propriedade F”, e uma avaliação é algo como “A situação/ação g é errada/certa (ou boa/má, ou bela/feia etc)” ou como “Deve-se fazer t”.

Referências

Brink, David O. (2007). “A Autonomia da Ética”, in Martin (2007).

Martin, Michael (org.) (2007). Compêndio Cambridge de Ateísmo. Trad. Desidério Murcho. Lisboa: Edições 70, no prelo.