quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Por que Deus não poderia ter feito o mundo?

Resumo: O mundo é tudo que há. Ele é repleto de entidades que o formam e que nele estão presentes. De alguma forma, sentimos que precisamos de uma explicação para a existência das coisas presentes no mundo e, talvez, do próprio mundo. Neste ponto, é comum nos perguntarmos se o mundo sempre existiu ou se passou a existir; e, se passou a existir, perguntamo-nos se foi ou não criado. Dizem alguns que Deus criou o mundo e, de alguma forma, tudo que há nele. Considero essa tese contraditória. E o que pretendo mostrar neste artigo são os motivos das minhas considerações. O meu caminho argumentativo é mostrar que certas entidades formadoras do mundo são entidades necessárias e que, portanto, não poderia ser o caso de elas terem sido criadas, já que a criação pressuporia que antes da mesma não havia tal entidade necessária, e uma entidade necessária não poderia não existir. Se assim o for, isso mostraria que tais entes não podem ser criados, ainda que por Deus.

Palavras-Chave: Metafísica. Entes Necessários. Filosofia da Religião.

Como eu disse antes, pensemos o mundo como tudo que há. Poderia Deus ter criado tudo que há (exceto si próprio, é claro)? Não podemos responder essa pergunta sem antes responder “o que seria Deus, se existisse?”. Definimos Deus aqui, pelo menos de modo inicial, como um ser onipotente, onisciente e sumamente bom que teria  ao menos possibilidades epistêmicas de ter criado o mundo. É claro que as teorias teístas não querem aceitar que Deus tenha sido criado e nem que tenha surgido em algum momento, pois isso pressuporia que existia algo de onde Deus veio e, consequentemente, que Ele não poderia ter criado o mundo. Assim, uma teoria teísta normalmente assere que Deus é um ente necessário. Esta já é uma suposição um tanto controversa, mas não precisamos nos focar nela, pelo menos por enquanto, a fim de compreendermos a relação entre Deus e o mundo.
Mas precisamos antes entender o que é o mundo. Eu já disse que ele é tudo que há, mas é possível que haja muitas totalidades diferentes. Por exemplo, é possível um mundo sem humanos, é possível um mundo sem planetas maiores que Júpiter, é possível até um mundo sem nenhuma matéria. Mas seria possível um mundo vazio? Talvez respondamos que é possível, se pensarmos que estamos falando sobre vazio de matéria. Mas não é este o ponto. A questão é se é possível existir um mundo sem matéria, sem espaço, sem tempo, enfim sem nenhum elemento. Esta questão é relevante para entendermos a relação entre o mundo e Deus porque Deus só poderia ter criado o mundo, se fosse possível existir um estado de coisas completamente vazio, sem nenhum elemento (só com Deus), e que não fosse o mundo. Pois só se houvesse um tal estado, Deus poderia ter criado tudo que há.
            E é possível um tal estado? Minha resposta é dizer que não. Pois há outros seres que são necessários além de Deus, se Deus existir e for necessário, a saber, o espaço, o tempo e as leis naturais; e a existência necessária de entes que não são Deus constitui a existência necessária do mundo. E, se o mundo é necessário, então não pode ter sido criado. Mas são essas entidades realmente necessárias?
Comecemos pelo espaço. Meu argumento pela necessidade do espaço é o seguinte: se eu tomo qualquer objeto, como uma faca, e removo suas dimensões espaciais (ou seja, faço com que a faca fique com 0cm x 0cm x 0cm), eu simplesmente não tenho mais uma faca; da mesma forma, se eu removo o espaço de um estado de coisas, eu simplesmente não tenho mais um estado de coisas. Assim, se há um estado de coisas, o espaço lhe é essencial. Além disso, se Deus fosse criar o mundo, precisaria de um espaço, dentro de si mesmo ou fora de si, para criar o mundo.
E quanto ao tempo? Se Deus criou o mundo, então havia um momento antes dele criar o mundo e um momento depois de ele criar o mundo. A existência de 2 momentos implica na existência do tempo. Assim, o tempo já existia desde antes de Deus criar o mundo. Se Deus é um ente necessário, então o tempo também é – pois há um intervalo de tempo entre Deus estar presente sem mundo e estar presente com mundo.
Sobre as leis naturais, primeiramente devemos fazer uma observação: é controversa a existência de leis, mas para a presente discussão vamos considerar que elas existem e que elas são a única forma de explicar como qualquer coisa pode ocorrer e como os objetos têm disposições (para qualquer coisa ocorrer, é preciso haver leis que regulamentem as propriedades envolvidas na ocorrência). Perguntemo-nos, então, se Deus poderia criar as leis da natureza. Certamente ele poderia criar algumas. Mas o ato de criação de leis só pode ser explicado por meio de uma lei da natureza. Por exemplo, se Deus pensou e seu pensamento fez uma lei existir, então a relação entre o pensamento de Deus e a existência da lei só pode ser explicada por meio de uma lei da natureza que regulamente essa relação. Se não, não haveria explicação para o fato de o pensamento de Deus querendo criar uma lei não causar uma catástrofe em vez de criar a lei. Assim, pelo menos algumas leis básicas, que regulamentariam a relação entre Deus e todo o resto, teriam de ser necessárias.
Como em qualquer momento antes, durante ou depois da criação do mundo tem de haver os entes necessários, e a existência dos entes necessários já constitui a existência de um mundo, isso implicaria que antes da criação do mundo já havia mundo. Dessa forma, se Deus não poderia ter criado o espaço, nem o tempo e nem algumas leis da natureza, ele certamente não poderia ter criado o mundo - pois espaço, tempo e leis já constituem um mundo. O que nos faz pensar que, a situação hipotética do estado de coisas vazio com Deus, antes da criação, não seja realmente possível – dada a necessidade da existência dos objetos aqui indicados. Mas Deus certamente poderia ter organizado algumas leis de modo a matéria e a vida poderem vir à existência ou mesmo ter criado diretamente a matéria e/ou a vida (e todo os outros objetos contingentes).
Deus ainda pode ser a explicação da existência dos seres contingentes; e esse é um papel importante. Só não podemos abandonar nossa racionalidade, acreditando que poderia haver um Deus que tivesse criado o mundo. Não é possível criar o mundo, dado que a própria ocorrência da criação já pressuporia a existência de um mundo. Temos que aceitar o que a razão nos impõe. Mas ainda pode estar reservado a Deus a explicação da existência dos seres contingentes.
Quando nos perguntamos sobre o que explica a existência das coisas, queremos saber sobre essas coisas contingentes que nos rodeiam. Sabemos que para não terminarmos num regresso da explicação, precisamos que haja algum objeto necessário cuja pergunta sobre a explicação da existência não seja cabida ou que exista e cujo surgimento não seja possível. O ponto que tentei traçar é que há pelo menos três objetos necessários que permitem e explicam a existência das coisas contingentes. No espaço, com o tempo, as leis naturais fazem surgir matéria – essa é uma explicação. Outra, que envolvesse Deus, poderia ser de que Deus, no espaço e no tempo, criou matéria – de acordo com a regulamentação de seus poderes pelas leis naturais.
O defeito da teoria teísta agora é que ainda não temos boas razões para aceitar a tese, que no início pressupomos, de que Deus é um ente básico e necessário. Se existe um ser consciente, onipotente, onisciente e sumamente bom no mundo, por que tal ser não poderia não existir e o mundo continuar existindo? Parece-me que poderia. Mas se poderia, será então que Deus poderia ter surgido? Com o espaço, tempo e leis temos tudo que precisamos para gerar até a existência de Deus. Que razões, então, independentes de nossa vontade, poderiam ser boas razões a favor da necessidade de Deus? A única resposta que me ocorre é a crença de que há algo de estranho em algo material surgir do espaço imaterial só a partir de tempo e leis. Um teísta deve defender algo nesses termos para defender pelo menos a essencialidade de Deus para o surgimento da matéria e/ou da vida.